Hoje, lendo um post da Jana sobre o curso de alemão que ela está (re)iniciando, lembrei de uma história que me trouxe boas recordações.
Ainda morando no Rio, eu e a patroa conhecemos uma senhora bem velhinha, muito simpática e educada, chamada Felícia. Dona Felícia, era como todos a chamavam. Um amor de pessoa. Daquele tipo que você se encanta automaticamente. Tinha muita dificuldade pra andar, mas fazia questão de sair de casa, todos os dias, para se dirigir à empresa onde trabalhava como tradutora e professora de alemão. Na verdade ela prestava serviços à empresa onde eu e a patroa começamos a trabalhar. Teve, na empresa, um passado de muito trabalho, já que a grande maioria dos documentos, manuais de equipamentos, etc, eram originalmente em alemão. Além de traduzir os textos, dava aulas de alemão pra Deus e o mundo. Ao longo dos anos, os textos passaram a vir cada vez mais em inglês, e aos poucos o trabalho dela foi escasseando. Apesar disso, cada novo grupo de funcionários que entrava na empresa acabava montando uma turminha e indo lá pedir aulas para a Dona Felícia. E isso certamente causava nela uma alegria intensa, visto que ela respondia com seu sotaque característico: “Clarro! Que dia é bom parra vocês?”
Participamos da última turminha dela. Éramos quatro alunos portando o livro-texto de alemão. Sentávamos ao redor dela numa mesa de reunião, e a aula era dada no lápis e papel. O apontador à manivela que ficava preso no canto de sua mesa foi o segundo e último que vi da espécie. Antes desse, só o do meu avô, que decorava uma estante no salão de jogos. Acho que estão extintos. Mas enfim, entre uma lição e outra, e sempre à nosso pedido, ela contava alguma passagem da sua vida. Não posso falar pelos outros alunos, mas o meu maior interesse nas cinco ou seis aulas que tivemos não era aprender alemão, e sim aprender com sua história de vida. Ah, claro, e ouvi-la falar Arrarraquarra, porque era a coisa mais engraçada do mundo.
Confesso que não lembro direito onde ela nasceu, mas acho que foi numa cidadezinha alemã ou de algum outro país de mesmo idioma, visto que ela falava alemão fluentemente. Saiu fugida de sua cidade natal por conta da segunda guerra mundial. Ela contava que os nazistas invadiam as cidades e raptavam as moças novinhas (ela devia ter uns 15 ou 18 anos na época) pra formar a tal raça pura que eles falavam. Ou seja, pegavam as meninas, à força, pra procriar. Pura barbárie. A fim de escapar disso, seu pai a mandou para o Brasil. Aqui, ela encontrou um grego pelo qual se apaixonou, e acabou casando.
− Epa! Peraí! Desde quando uma alemã e um grego conseguem entender o que o outro fala?
Pois eu mesmo perguntei como eles faziam pra se comunicar, e ela disse, com aquele sorrisinho maroto de uma senhora de mais de 80 anos: “Dávamos um jeito. Eu aprrendi a falarr um pouquinho de grrego, e ele aprrendeu a falarr um pouquinho de alemão. E nós dois estávamos aprrendendo o português.” Pensando bem, quem é que disse que o amor precisa de palavras?
Na época das nossas aulas, o marido já havia falecido há alguns anos, mas ela não parecia triste com isso. Muito pelo contrário. Ela transparecia que tinham tido uma vida maravilhosa, sem coisas não-ditas, sem meias-palavras. Era ainda, sim, apaixonada pelo marido. Apaixonada pela vida que tiveram juntos. Era uma pessoa feliz por tudo que a vida havia lhe dado.
Logo depois Dona Felícia adoeceu, e muito a contragosto, parou de trabalhar à pedido do filho que cuidava dela. Aos poucos, as notícias sobre seu estado de saúde foram rareando, e depois de três anos, ninguém sabe dizer se ela ainda está viva. Parece até que ela era um anjo que veio nos agraciar com sua presença, e de uma forma ou de outra, terminou sua missão. Gosto de pensar assim, e o fato de não ter me despedido dela gera em mim uma esperança. Esperança de um dia vê-la novamente, olhar para aquele rosto levemente maquiado e emoldurado por um gigantesco par de óculos com armação de plástico, cumprimentá-la dando um suave aperto em suas mãos delicadas, e dizer apenas: “obrigado por ser minha professora de alemão”.
Ainda morando no Rio, eu e a patroa conhecemos uma senhora bem velhinha, muito simpática e educada, chamada Felícia. Dona Felícia, era como todos a chamavam. Um amor de pessoa. Daquele tipo que você se encanta automaticamente. Tinha muita dificuldade pra andar, mas fazia questão de sair de casa, todos os dias, para se dirigir à empresa onde trabalhava como tradutora e professora de alemão. Na verdade ela prestava serviços à empresa onde eu e a patroa começamos a trabalhar. Teve, na empresa, um passado de muito trabalho, já que a grande maioria dos documentos, manuais de equipamentos, etc, eram originalmente em alemão. Além de traduzir os textos, dava aulas de alemão pra Deus e o mundo. Ao longo dos anos, os textos passaram a vir cada vez mais em inglês, e aos poucos o trabalho dela foi escasseando. Apesar disso, cada novo grupo de funcionários que entrava na empresa acabava montando uma turminha e indo lá pedir aulas para a Dona Felícia. E isso certamente causava nela uma alegria intensa, visto que ela respondia com seu sotaque característico: “Clarro! Que dia é bom parra vocês?”

Confesso que não lembro direito onde ela nasceu, mas acho que foi numa cidadezinha alemã ou de algum outro país de mesmo idioma, visto que ela falava alemão fluentemente. Saiu fugida de sua cidade natal por conta da segunda guerra mundial. Ela contava que os nazistas invadiam as cidades e raptavam as moças novinhas (ela devia ter uns 15 ou 18 anos na época) pra formar a tal raça pura que eles falavam. Ou seja, pegavam as meninas, à força, pra procriar. Pura barbárie. A fim de escapar disso, seu pai a mandou para o Brasil. Aqui, ela encontrou um grego pelo qual se apaixonou, e acabou casando.
− Epa! Peraí! Desde quando uma alemã e um grego conseguem entender o que o outro fala?
Pois eu mesmo perguntei como eles faziam pra se comunicar, e ela disse, com aquele sorrisinho maroto de uma senhora de mais de 80 anos: “Dávamos um jeito. Eu aprrendi a falarr um pouquinho de grrego, e ele aprrendeu a falarr um pouquinho de alemão. E nós dois estávamos aprrendendo o português.” Pensando bem, quem é que disse que o amor precisa de palavras?
Na época das nossas aulas, o marido já havia falecido há alguns anos, mas ela não parecia triste com isso. Muito pelo contrário. Ela transparecia que tinham tido uma vida maravilhosa, sem coisas não-ditas, sem meias-palavras. Era ainda, sim, apaixonada pelo marido. Apaixonada pela vida que tiveram juntos. Era uma pessoa feliz por tudo que a vida havia lhe dado.
Logo depois Dona Felícia adoeceu, e muito a contragosto, parou de trabalhar à pedido do filho que cuidava dela. Aos poucos, as notícias sobre seu estado de saúde foram rareando, e depois de três anos, ninguém sabe dizer se ela ainda está viva. Parece até que ela era um anjo que veio nos agraciar com sua presença, e de uma forma ou de outra, terminou sua missão. Gosto de pensar assim, e o fato de não ter me despedido dela gera em mim uma esperança. Esperança de um dia vê-la novamente, olhar para aquele rosto levemente maquiado e emoldurado por um gigantesco par de óculos com armação de plástico, cumprimentá-la dando um suave aperto em suas mãos delicadas, e dizer apenas: “obrigado por ser minha professora de alemão”.
Post dedicado à Dona Felícia, com quem tão pouco convivi, mas com quem muito aprendi, e à Jana, que me fez lembrar dela.
ó... esse tipo de história já dá um filme. do tipo de filme da sessão da tarde, pra assistir numa tarde chuvosa e que as garotas sempre choram no fim... :D
ResponderExcluirMandou bem, Test.
ResponderExcluirAgora, em vez de pedir pra ela falar Araraquara, devia ter pedido pra falar "as áftas doem e as hemorróidas também!"
É eu sei, zuei com o romantismo do texto, né? Foi mal ae. É que eu sou uma besta.
Tô com algum problema com os seus posts, porque acabo chorando no final. Emocionante!! Lindo!
ResponderExcluirVocê tem certeza que é engenheiro mecânico, hein?!
ResponderExcluirMeu!!! Que lindo!!! Obrigada pela dedicatória, tô me lavando de chorar! Fiquei sem palavras!
ResponderExcluirMuito obrigada!